quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Lição: Como Ser Um Bom Fingidor

Olá classe! Nessa primeira lição aqui, no blog do nosso amigo Clérigo (obrigado pelo convite!), falarei sobre algo que já foi muito comentado na extinta Dragão Brasil: a confusão entre Jogador e Personagem.
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“O poeta é um fingidor. Finge tão completamente. Que chega a fingir que é dor. A dor quedeveras sente.” Fernando Pessoa


A citação do grande poeta Fernando Pessoa vem bem a calhar: assim como o poeta, o jogador de RPG também é um “fingidor”, pois “finge” ser outra pessoa, ou, com palavras mais bonitas, “interpreta um personagem”. Mas, até onde essa interpretação não fica esquecida e suplantada pelas regras ou pelo pensamento metajogo?

Nesses meus quinze anos como mestre, vi muitos jogadores escolhendo Personagens unicamente pelas vantagens “numéricas” que eles ofereciam, mas, na hora de interpretar, de fazer seu papel de Jogador/Ator, necas. Por exemplo, cansei de ver clérigos que jamais rezavam ou falavam sobre seu deus (e alguns que sequer sabiam o nome do deus a quem prestavam orações...), bardos que jamais entoaram uma música ou declamaram um versinho sequer, bárbaros analfabetos que faziam cálculos para pechinchar com o ferreiro, paladinos propondo ao ladino que esse esvaziasse os bolsos do PDM ricaço e por aí vai... isso é o pensamento metajogo sobrepondo-se sobre a interpretação.

Se aplicarmos a teoria dos jogos no RPG, veremos que, na maioria dos grupos, o principal objetivo é, obviamente, que tudo saia bem para todos. Os Jogadores reúnem seus Personagens, cada qual especialista em determinada área, e, juntos, buscam superar os desafios propostos pelo Mestre usando as habilidades de cada um. Ok, isso está certíssimo. O problema é quando esse pensamento extrapola a verossimilhança. Vejamos um exemplo positivo que aconteceu em meu grupo de jogo:

Estavam os aventureiros, todos imberbes de segundo nível, invadindo as ruínas de um castelo que foram tomadas por um pântano. O motivo era nobre: um grupo de orcs adoradores de Orcus havia capturado um casal de crianças filhas do dono da caravana com que o grupo seguia.

Chegando ao castelo, os jogadores iniciaram a exploração cuidadosa, buscando exterminar os orcs sem levantar suspeitas de sua presença. Embora tenham tomado todas as precauções, um grupo de seis orcs e dois ogros os viram: os Jogadores sabiam que uma luta nos corredores seria decretar a morte do grupo e decidiram fugir. Na frente, o bardo, seguido do feiticeiro, logo atrás o clérigo e, por fim, o guerreiro. Ossur de Sundabar, guardem esse nome, é uma futura lenda!

O jogador que interpretava o guerreiro sabia que havia cinco mercenários bem armados diante dos portões e decidiu adentrar nos jardins internos do castelo, agora um pântano lamacento, para surpreender os inimigos pelas costas. O que Ossur não esperava era encontrar um crocodilo dormindo sob as águas! Que fique claro: ele já estava lá, a área não havia sido explorada. Eu não costumo modificar as aventuras para evitar tragédias, cabe ao grupo tomar cuidado de suas ações.

Ossur foi surpreendido e abocanhado pelo crocodilo. Durante o ataque, perdeu sua espada longa e ficou preso pelas pernas na bocarra do bicho. Agora, vamos pausar a cena e pensar: o que geralmente ocorre numa hora como essas? Sim, o grupo volta para ajudar o infeliz guerreiro. Mas, como? Não estavam todos fugindo? Ossur não avisou sobre sua tática e não ousou gritar para não atrair os orcs, piorando ainda mais sua trágica situação. Logo, ninguém poderia socorrer o infeliz. Sem alternativas, o Jogador tomou a decisão mais sensata (???) e cabível: sacou a adaga de sua cintura e iniciou um combate contra o crocodilo. Foi a luta mais tensa que já presenciei nas mesas de RPG. Jogamos com rolagem aberta, sem divisória, logo, não havia como roubar. Após três turnos, Ossur já encarava a morte de perto e decidiu gritar por socorro. Seus amigos escutaram, mas os orcs também. Agora, além de estar preso na boca de um crocodilo, Ossur estava sendo assistido por cinco orcs que riam de sua situação.

Quando tudo parecia perdido, a famosa mão divina surgiu: o Jogador rolou três Acertos Críticos esmagadores, dizimando o crocodilo. Não só fez isso como lambuzou a cara com o sangue do bicho, ergueu-se e, embora mancando seriamente, partiu para cima dos orcs com a espada recuperada. O que vocês acham que aconteceu? Os orcs correram, óbvio! Eu faria o mesmo, vendo o feito do inimigo! Mesmo assim, três deles sucumbiram à espada do guerreiro antes que o restante do grupo chegasse para o resgate.
Fim da história: o grupo precisou fugir de uma horda de orcs, as crianças foram mortas e devoradas e metade da caravana sofreu o mesmo destino. O guerreiro quase morreu, manca até hoje e precisou consertar sua armadura. Contudo, veja como valeu a pena. Duvido que essa história seja esquecida pelo grupo. Até hoje Ossur conta “o causo do crocodilo”, mostrando a adaga salvadora e a cicatriz em suas pernas.

É disso que falo quando cito “o bom fingidor”. O grupo poderia ter usado o metajogo e inventado uma desculpa para voltar, mas não fizeram porque os Personagens não fariam isso. Eles sequer tiveram tempo de pensar no que estava acontecendo.

Também há o caso do Jogador/Leitor: interessado pelo jogo, ele leu todos os livros básicos, suplementos e cenários do jogo, decorando vários detalhes com a desculpa esfarrapada de que, assim, jogará melhor. Claro que conhecer as regras e, principalmente, a ambientação é importante, só é preciso ter cuidado para não confundir o que você sabe e o que seu Personagem sabe. Imaginemos a seguinte situação: seu grupo está chegando ao vilarejo de Yerevan e vocês são recebidos por Ebenézer, o clérigo local. Você já leu a descrição de Yerevan e sabe que Edenézer é, na verdade, agente de um culto obscuro e maligno, logo, decide não confiar no rapaz. Bem, e por que seu personagem não confiaria nele, ao menos a primeira vista? Ele leu na “Gazeta Diária” ou a informação vazou no Wikileaks? Não, meu caro, seu Personagem não deveria saber disso. Sim, engula a vontade de desmascarar o coitado e interprete, finja! Quem sabe, mais tarde, você não consiga desmascará-lo? Na verdade, a julgar pelo velho clichê, é isso mesmo que seu Mestre estava planejando, não estrague a diversão por conta de sua “sabedoria infinita” (leia-se leitura prévia).

Por fim, há momentos em que a interpretação é sobrepujada pelas regras. Como disse antes, é o caso do Jogador que abraça o Personagem pelas vantagens numéricas e esquece todo o resto. Seja mais verossímil, é muito mais divertido do que ficar calculando os bônus do seu monge tiefling. Assuma os riscos que seu Personagem assumiria e encare o mundo do ponto de vista dele. Perca um bom tempo lapidando o passado, escrevendo como ele tornou-se o que é hoje. São os fatos passados que guiam os fatos presentes e futuros.
Por hoje era isso, turma. Sei que chovemos no molhado, mas uma revisão para o início do ano sempre é bem-vinda! Até a próxima aula e não esqueçam o dever de casa. Um abraço!
Prof. Alessandro.
Prof. AlessandroAlessandro é professor de Inglês, Espanhol, Português, Religião e Literatura devido à profissão. Cineasta, cientista, astrônomo (não astrólogo...), artista plástico, ator, músico, linguista, poliglota, crítico e escritor devido à paixão. Leitor, RPGista, nerd, cinéfilo, enólogo e ocultista devido à diversão. Maníaco por cultura devido a algum mal genético. Ah, e chato, por pura força de vontade.

12 comentários:

  1. Perdão pela configuração... ainda estou aprendendo a postar...

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  2. Post muito legal e bem realista hehehe
    jah perdi as contas de quantos " advogados de regras" conheci nessa vida rpgistica hehehe
    Sem falar tb daquele pessoal que qdo vc tah descrevendo teu personagem que levou um tempão pra vc criar, e olha pro lado e vê os jogadores com aquele cara de tédio e de sono da até vontade de desistir e dizer há minha personagem é barbara e só. Isso é bem ruim pq acaba criando um estereótipo. Poucas pessoas tratam personagem de D&D como seres unicos. È muito dificil vc encontrar personagem com peculiaridades e qualidades e defeitos na interpretação.
    Batalhas são muito legais e uma das partes mais empolgantes. Mas rpg não é só isso.
    Batalhas épicas com personagens que interagem com o mundo os npcs e os companheiros de mesa fazem uma sessão de rpg ser genial.

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  3. otimo post! dica pessoal: coloque uma figura para quebrar o "paredão" de texto ;)

    ainda quero ler algo sobre rpg nas salas de aula

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  4. Muito bem falado, Professor! (lembrei de quando ia prà escola agora xD)

    Concordo com a idéia geral do post, é realmente bem chato quando um personagem mostra um conhecimento que ele não possui, ou faz algo totalmente avesso à sua natureza só porque o jogador viu um benefício saindo daquela ação /:

    Gostei também do caso do guerreiro Ossur, mas foi uma pena que a missão do grupo fracassou ^^

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  5. Metagame realmente estraga o jogo :/
    Ótimas dicas prof. RPG é uma boa ferramenta para a educação sonho com o dia em que ele possa ser usado nas salas de aula.

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  6. O post sobre RPG e sala de aula saíra no próximo mês, "comemorando" a volta às aulas. Mas, quem quiser ir dando uma olhada, veja o post que fiz no Dragão Banguela (http://dragaobanguela.blogspot.com/2010/07/post-do-leitor-o-rpg-em-sala-de-aula.html)
    Pois é, me empolguei na escrita e não tive tempo de catar imagens. Na próxima aula, melhorias a caminho.

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Seja bem vindo professor Alessandro! Excelente essa primeira lição, pois abriu o terreno para um post que estou escrevendo, muito obrigado!

    Como sou muito enxerido, eu editei seu post separando melhor os parágrafos e centralizando a imagem do Pessoa.

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  9. uahuaha... Lembro de uma vez em que dois jogadores do grupo tinham que cumprir uma tarefa, na primeira sessão eles fizeram bem, na segunda, após uma briga em outro jogo, eles estavam enfrentando o "boss" da missão... Um dos jogadores deixou o amigo lá para morrer, fechando a única saída e perdendo a missão... o que depois levou o grupo a um caminho muito grande...
    Ah, o personagem abandonado morreu, ele fez outro personagem e no primeiro encontro, matou o outro que lhe deixou para traz...

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  10. fantastico, fantastico ....

    o post esta muito bom, varios jogadores deveriam ler isso, bem, não precisa de muitas palavras pois os comentarios tambem estão a altura.

    obs. fico no aguardo para ver o artigo do rpg na escola ou rpg na educação.

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  11. Post muito bom, bom mesmo. Aliás, acho interessante o que foi dito sobre o conhecimento do cenário dos jogadores. O que eu nunca vi em um cenário é uma parte dedicada ao jogador, ou seja, o que o mestre dá para o jogador lê para ele se inteirar no mundo, sem extrapolar sabendo coisas que estragariam a campanha.

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  12. Post bastante interessante. Um problema grave é também jogadores inexperientes interpretando personagens novatos. Recentemente em uma aventura no mundo de Tormenta o mestre colocou no meio da aventura Katabrok, o bárbaro e acidade de Khalifor. COmo sou leitor do cenário sabia bem o que me esperava, mas como meu personagem era um jaguara de 1º nível, tive de interpretar a surpresa dele em ouvir os relatos do bárbaro.

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