sábado, 26 de fevereiro de 2011

Lição Especial: RPG e Educação Parte I

Olá, classe! Após inúmeros pedidos, eis o post sobre RPG e educação! O assunto é bem amplo, portanto, farei dois posts. O primeiro, que veremos hoje, falará sobre os benefícios do RPG como ferramenta pedagógica e os resultados de algumas oficinas que ministrei. O próximo, mostrará como levar o RPG até à sala de aula ou qualquer evento educacional. O assunto é interessante e importantíssimo. Boa aula!
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Nós, como jogadores, certamente sabemos o quão importante o RPG foi (ou mesmo é) para nossa formação como leitores. É raro encontrar um RPGista que não goste de ler. Também sabemos o quanto nos envolvemos com o enredo das aventuras (às vezes, até demais) e como seria interessante envolver-se desse modo com uma aula de Literatura ou História. Logo, chegamos a conclusão: o RPG pode ser uma excelente ferramenta para o ensino.

Benefícios do RPG
Em primeiro lugar, o RPG amplia o convívio social. Ao invés de estar sentado em frente a uma tela de computador, a interação entre os jogadores dá-se frente-a-frente. Para a educação, isso é fundamental: é a partir do outro que eu construo minha própria identidade. Não bastasse essa interação social, o RPG estimula o trabalho em equipe. Vamos pensar um pouco: em uma aventura convencional, teremos um grupo de especialistas resolvendo problemas para atingir seus objetivos. Não importa se você é o guerreiro ou o ladino, sempre terá sua vez de mostrar seu talento e verá que ele não é mais importante que o talento do outro. Completar a aventura sozinho pode até ser possível, mas ela fica muito mais fácil em grupo.

Com cenários tão diversificados, o jogo também proporciona uma visão ampla de nosso próprio mundo. Vamos supor que, em determinada campanha, o grupo enfrente uma revolta popular contra o rei tirano. Por mais simples e pueril que pareça, estamos lidando com temas e valores essenciais em nossa sociedade. Estamos vivenciando ali, em nosso passatempo, situações que podem ser perfeitamente vistas em nosso mundo real, como a recente onda de revoltas populares no Oriente Médio. Fica mais fácil entender certos fatos tendo-os "vivenciado" através do jogo. Não é de se estranhar, portanto, o uso que certas instituições de combate às drogas fazem do RPG, fornecendo situações de risco completamente controláveis a pacientes sujeitos a recaídas. Se, durante o jogo, ele mostrar sinais de um possível retorno, o trabalho de meses, talvez anos, não estará jogado fora.

Como já sabemos, jogar RPG implica em leitura. Mesmo que sejam apenas os módulos básicos, já é um princípio para leituras mais aprofundadas. Depois, lemos os suplementos, os cenários, os romances sobre os cenários, chegamos às origens do RPG e logo estamos estudando mitologia grega, nórdica e até mesmo hindu. O ato de ler deixa de ser uma obrigação e passa a ser algo e útil, mesmo que seja para o jogo. A transferência dessa "noção de importância" da leitura para a vida comum, geralmente, ocorre pouco tempo depois.

Alunos e professores lendo: o sonho de qualquer escola!

A maioria dos RPGs possui um sistema de evolução, em que os Personagens acumulam pontos para evoluir e melhorar suas habilidades. Embora seja uma premissa bem nietzschiana (o que não me mata me deixa mais forte), essa noção de superar desafios para melhorar a si mesmo é de vital importância em qualquer meio, seja acadêmico, empresarial ou mesmo pessoal. Sei que parece forçado, mas cansei de brincar que "viver é como jogar RPG: você começa no nível 1, vai ganhando XPs para chegar ao nível épico". Quem dá aula compreende o quanto nossos jovens carecem dessa visão simplista, porém eficiente, da vida.

Bom, já vimos os benefícios implícitos do RPG. Leitura, interação e mundividência são habilidades intrínsecas de qualquer RPGista. Mas, e a sala de aula? É possível usar o RPG dentro da escola, ou, mais precisamente, para levar o conteúdo aos alunos? Calma, gafanhoto. Tudo é questão de adaptação. No próximo post, debateremos a fundo o melhor modo de usar RPG na escola. Hoje, daremos uma olhada em que ele pode auxiliar.

O RPG como ferramenta pedagógica
Usando o RPG para explicar determinado conteúdo, o professor aproxima seus alunos ao assunto a ser estudado. A matéria deixa de ser uma teoria, muitas vezes abstrata, e torna-se um objeto mais palpável, mais visível, útil e prazeroso. Pense em um professor de História explicando a Segunda Guerra: ele pode levar um bonito e encorpado texto falando sobre o evento. Como resultado, terá meia-dúzia de alunos interessados, quando muito. Os fatos que ocorreram e a mentalidade daquela época estão muito distantes da realidade de nosso aluno contemporâneo. Por que não levá-lo até lá? Por que não tirá-lo do "conforto" da cadeira escolar e lançá-lo em meio a uma Europa assolada por invasões, campos de concentração, fome, miséria e tudo o mais? Pode parecer um exagero, mas é justamente isso: é preciso mostrar o quão terrível foi tal fato histórico, mostrar que ele não deve ser visto apenas como um mero conteúdo escolar, tema de filmes e video-games.

Ainda não temos uma máquina do tempo, mas o RPG é um substituto muito mais vantajoso, já que oferece uma viagem completamente segura. E não apenas o professor de História pode se benecifiar disso: o que os jovens achariam de enfrentar as ondas ao lado de Vasco da Gama em "Os Lusíadas"? Ou, quem sabe, ao lado de Odisseu? As possibilidades da "máquina do tempo" também se aplicam à Literatura.

E os demais conteúdos? Bom, concordo que seja difícil trabalhar uma área mais exata com o RPG: o próprio conceito do jogo envolve muito mais as ciências humanas. Mas, difícil não significa impossível. A melhor sugestão é um trabalho interdisciplinar (ou, multidisciplinar, como queiram). Na verdade, em minha opinião, esse é o caminho da excelência em educação: unir as áreas em um tema comum. Muito complexo? Nem tanto. Como eu adoro exemplos, então vamos lá:

Vamos imaginar o caso da Segunda Guerra. Os professores decidem usar o tema nas mais variadas disciplinas utilizando o RPG. O quê? Impossível? Não, não é. Basta vontade e participação docente. Então, o professor de História verifica os pontos históricos (dãrds) que serão abordados; o professor de Matemática pode trabalhar estatística; o professor de Física poderia trabalhar noções de velocidade, tempo e distância com a movimentação de tropas; o professor de Química e o de Biologia poderiam abordar os efeitos das armas químicas e da bomba atômica nos seres vivos; o professor de Literatura poderia abordar a segunda geração modernista; o professor de Português poderia trabalhar o texto jornalístico, como se os alunos fossem repórteres em meio à guerra; em Filosofia, Sociologia e Religião, os professores teriam uma vasta gama de possibilidades; em Inglês e Espanhol, os professores poderiam usar o idioma como forma de comunicação entre os diferentes países envolvidos (envio de mensagens, correspondentes internacionais, etc). Em Geografia, as mudanças no cenário geopolítico. Enfim, não é impossível, basta uma união dos professores.

Professores de todo o mundo, uni-vos!

Experiências pessoais
Alguns dirão: "falar é fácil, quero ver na prática". Pois então, eu não só ensino a pescar: também pesco. Logo que comecei a lecionar, já estava com aquela ideia fixa de utilizar o RPG em sala de aula. Trabalhando Literatura, decidi levar "A Odisseia" de uma forma inovadora através do que chamei "narrativa coletiva". Conversei com o professor de Matemática e ele topou a ideia de um trabalho interdisciplinar: trabalhando conceitos de geometria, ele auxiliaria os alunos a desenvolverem os dados multifacetados para às aulas de Literatura.

Foi um projeto rápido, na verdade, nem foi um projeto. Os alunos criaram os dados, "jogaram" "A Odisseia" e pronto. Foi simples, fácil e, modéstia a parte, um sucesso. Primeiro porque as noções aprendidas em Matemática agora faziam sentido. É bom frisar que o professor foi bem "sacana", não dando as fórmulas, mas sim desafiando os alunos a criarem os dados. Depois, claro, ele explicou algumas e os alunos que conseguiram exibiram como haviam conseguido construir os sólidos.

A gurizada mandando ver no RPG... durante a aula!

Em Literatura, "A Odisseia" deixou de ser um texto comprido e chato para ser uma aventura épica (o que, na verdade, realmente é!). Foram três semanas de viagens marítimas, combates contra monstros marinhos, ciclopes e troianos! Eles viveram o que Ulisses viveu. A narrativa ganhou sabor e, por mais mentira que pareça, eles leram o livro, além de "A Ilíada", o outro poema épico de Homero.

No ano seguinte, acabei não usando o RPG por falta de tempo. Planejar uma aula usando o jogo é bem trabalhoso, temos que confessar. Mas, não deixei o RPG de lado. Em um acordo com a direção, criei um grupo de jogo para alunos problemáticos no turno inverso. Duas tardes por semana, nos reuniamos em uma salinha dos fundos da escola para jogar D&D. Isso mesmo, nada de didática, foi pura diversão mesmo.

A princípio, os cinco alunos estavam desconfiados e interpretavam aquilo como um castigo pela indisciplina. Três meses depois, as ocorrências disciplinares já não ocorriam, as notas aumentavam e o número de retirada de livros simplesmente triplicou. Hoje, esses cinco alunos estão no terceiro ano do Ensino Médio e são excelentes alunos. Se antes o problema era indisciplina, agora os professores reclamam da participação excessiva durante as aulas.

Por fim, em uma cadeira da faculdade, estava sem ideias para uma pesquisa acadêmica. Precisava envolver algo prático, algo que pudesse ser usado em sala de aula. Às vezes, estamos tão próximos da solução que nem nos damos conta: faltando uma semana para a entrega do pré-projeto, bati meus olhos em minha estante de livros de RPG e a luz brilhou sobre minha cabeça: era a hora de expor o jogo ao mundo acadêmico.

Resultado: a apresentação do trabalho, que tinha tempo máximo de 10 minutos, levou mais de meia hora devido às inúmeras perguntas e ao interesse dos colegas. Se não fosse a intervenção da professora, certamente debateríamos até o fim da aula.

Meses depois, recebi um convite: apresentar aquele mesmo trabalho na mostra de iniciação científica. Lá estava eu, mostrando nosso amada hobby para cerca de cem futuros professores. Precisei apresentar duas vezes, tamanho foi o sucesso dos comentários.

Uma das oficinas na Faccat.

Pensam que acabou? Nada disso! Logo, vieram as oficinas, na própria faculdade. Na primeira, eu estava diante de trezentas professoras das séries iniciais, apenas para apresentar o jogo, digamos, teoricamente, como nesse texto. Nas outras quatro, ocorridas nos meses seguintes, com grupos menores, mostrei na prática como o jogo funcionava. Novamente, sucesso.

De outro ângulo.

Uma das coisas mais bacanas ocorreu quando uma professora enviou-me o projeto dela para aprovação. Estou verificando com ela se posso torná-lo público, para que vejam. Em resumo, ela participou da oficina na quinta-feira e no domingo já me enviou o projeto, pretendendo usá-lo na segunda-feira de manhã!! Confesso que fiquei abismado: estava perfeito. Como professora da 3ª série, ela elaborou todas as aulas daquele mês utilizando o RPG como motivador. Partindo de um livro sobre a história da região, ela elaborou uma aventura em que um vilão voltou ao passado e mudou os rumos da história, cabendo à turma consertar as alterações. Acontece que ela não forneceu a história real, fazendo com que os alunos procurassem por respostas em uma legítima campanha investigativa! Praticamente, um live action!

Depois da faculdade, foi a vez das escolas. Já fui em três escolas da região levando o RPG para os professores das mais variadas disciplinas e séries. Infelizmente, as escolas ainda não me enviaram as fotos e eu, como sempre, esqueci a máquina... Mas, esse ano tem muito mais! Em breve, ocorrerão novas oficinas na faculdade e, em agosto, provavelmente eu dê as caras lá no Rio Grande do Norte, em um simpósio internacional de ensino da Língua Materna. Onde eu vou, o RPG e a educação vão comigo! Hehehe!

Era isso, moçada! Sábado que vem, falo de como levar o RPG até a escola. Um abraço!
Prof. AlessandroAlessandro é professor de Inglês, Espanhol, Português, Religião e Literatura devido à profissão. Cineasta, cientista, astrônomo (não astrólogo...), artista plástico, ator, músico, linguista, poliglota, crítico e escritor devido à paixão. Leitor, RPGista, nerd, cinéfilo, enólogo e ocultista devido à diversão. Maníaco por cultura devido a algum mal genético. Ah, e chato, por pura força de vontade.

7 comentários:

  1. shoow
    e eu estou tentando montar um grupo de rpg na minha escola

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  2. Caraaacaaa prof. Que iniciativa Legal!!
    Isso é prova que da certo!!!

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  3. Quase chorei ao ler seus relatos, professor! Quero muito saber como usar o RPG como ferramenta didática (em sala de aula mesmo) pois só consegui bons resultados como atividade extra-curricular.

    Por acaso está planejando fazer um mestrado nessa área?

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  4. Muito bom, sempre gostei muito de RPG e achei que realmente estimula muito o aprendizado, raciocínio e cultura dos que gostam mesmo, além de que especificamente RPG na educação me interessa bastante (e agora educação na minha área também...), e na saúde, minha mãe que é psiquiatra e trabalha com pessoas com problemas com drogas teve uma ideia parecida numa das várias vezes que falei sobre RPG para ela, embora nunca tentamos pôr em prática.

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  5. noss,a muito interesante!
    professor, posso mandar o link desse texto para a comunidade do orkut "rpg e educação"?

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  6. Obrigado pelos comentários! Clérigo, primeiro, preciso me graduar! Hehehe! Talvez faça o trabalho de conclusão sobre o assunto. Se o governo bancar o mestrado (estou tentando uma futura bolsa), aí sim. Rafael, com toda a certeza! Quanto mais espalharmos a "Boa Nova" do RPG e educação, melhor!

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  7. Nossa...Eu nem tenho o que falar professor. Uma iniciativa bem ousada...Eu ja tinha pensado em como levar o RPG pra educação, mas sempre pensei "vão me achar um otário".

    Tirei meu chapéu, de verdade.

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