sábado, 14 de maio de 2011

Lição: Educação na Idade Média Fantástica

Olá, classe! Atendendo a mais um pedido, hoje falaremos sobre educação. Não, não sobre RPG e educação, como já fizemos, mas sobre como funcionaria a educação em um mundo medieval fantástico.

Primeiramente, gostaria de pedir desculpas pela demora no post, mas o blogger estava uma loucura essa semana, como vocês devem ter notado. Tanto é que ele simplesmente excluiu minha conta... foi necessário apelar ao tio Clérigo para me "reconvidar", através de outro e-mail, para só então conseguir postar. Dito isso, vamos à postagem que já estamos atrasados!
 
Nossos cenários de fantasia medieval não são, geralmente, fiéis a nenhum período histórico específico. O que temos é uma mistura de Alta e Baixa Idade Média com toques do Renascimento. Uma bagunça só. Mesmo assim, eles possuem alguns pontos em comum com nossa História mundana, ou seja, precisamos de uma liçãozinha básica de História antes de tudo.
 
Como é bom estudar, heim, filho?

A Alfabetização na Idade Média

Quando falamos em educação, hoje em dia, pensamos em escolas, em disciplinas, em tecnologia e o escambau. Esqueça isso. Na Idade Média, pouquíssimas pessoas tinham acesso à educação. Quando muito, aprendiam a ler e escrever com algum tutor experiente. Mesmo assim, esses privilegiados normalmente eram membros do clero ou da nobreza, a população era analfabeta mesmo.

Agora, vamos refletir: qual era a utilidade disso naquela época? As pessoas não tinham acesso a livros, não havia jornais, nem mesmo placas... se vivemos em um mundo em que ler é essencial, isso nem sempre foi assim. Para que o taverneiro colocaria uma placa escrita “Taverna O Pônei Saltitante” se a clientela nem saberia o que está escrito? Aquelas plaquinhas que vemos em vídeo games de RPG (aquelas, com canecas, espadas e poções desenhadas) seriam muito mais úteis.
 
A tradição oral era muito mais forte do que a escrita. Mesmo os bardos dificilmente sabiam ler e escrever: inventavam suas canções, decoravam e saiam por aí cantando. Foram alguns “pesquisadores” que coletaram essas canções em cancioneiros e por isso uma minúscula parte sobreviveu até nossos dias. Se voltarmos um pouco mais no tempo, na Antiguidade Clássica, veremos como a fala era muito mais importante do que a escrita: as Academias gregas (não, eles não iam lá malhar...) consistiam em um círculo de pupilos ouvindo as palavras de seu tutor. Escrever era considerado “coisa de burro”, de quem não tinha boa memória.
 
Aristóteles e Platão preparando-se para uma partidinha de basquete...

Fantasia Medieval

“Ok”, você diz, “mas isso não é verdade em mundos de fantasia medieval”. Sim, você está correto, gafanhoto! Cada cenário possui algum trechinho sobre como as pessoas são educadas naquele mundo, mas nenhum me convenceu até hoje...

Em minha opinião, quase 100% da população desses mundos DEVERIA ser analfabeta. Não sejamos hipócritas: para que, meu Deus, essas pessoas aprenderiam a ler e a escrever? Para que teriam lições de História e Matemática? Elas mal tinham o que comer e precisavam trabalhar de sol a sol para conseguir manter-se vivo. O tempo livre, raríssimo, era aproveitado com música, histórias e piadas ao redor da fogueira. Não podemos, de modo algum, confundir cultura com literatura: grandes civilizações sequer possuíam um alfabeto, mas legaram riquíssimas culturas, como nossas tribos indígenas.

Saber contar e fazer cálculos simples sempre foi importante, claro, e é bem provável que um comerciante medieval soubesse fazer cálculos como ninguém, sem saber desenhar um número sequer no papel.

O mais importante é lembrar que esse é um mundo diferente do nosso. As pessoas levam uma vida infinitamente diferente daquela que levamos. Aliás, pensando bem, há uma boa parte da população que ainda vive desse modo. Se o analfabetismo não “assusta mais o país”, o analfabetismo funcional é enorme. Eu mesmo vejo alunos que aprenderam a ler, mas, mesmo estando no Ensino Médio, não conseguem ler e compreender um texto um pouco mais longo. A leitura e escrita serve-lhes como ferramenta para pegar um ônibus, ler uma notícia (melhor, a manchete...) ou enviar um SMS.
 
Para quem mal tinha o que comer, ler deveria ser MUITO importante, não?

Para refletirmos sobre a utilidade da educação, lhes trago uma parábola que ouvi de um sacerdote real:

“Num rio bem largo, de travessia difícil, um barqueiro atravessava as pessoas de um lado para o outro.
Em uma das viagens, iam um homem que entendia de leis e uma educadora. No meio do trajeto, o homem pergunta ao barqueiro:
- Companheiro, você entende de leis?
- Não! - responde o barqueiro na sua simplicidade.
- Que pena - diz o entendido em leis - você perdeu metade da vida!
A educadora entra na conversa:
- Seu barqueiro, você sabe ler e escrever?
- Também não! - responde o barqueiro balançando a cabeça, meio sem graça.
- Que pena! Você perdeu metade da vida!
Nisso, o barco começa a fazer água e a afundar. O barqueiro, preocupado, pergunta:
- Vocês sabem nadar?
Os dois respondem, apavorados:
- Não, não sabemos!
- Que pena! - conclui o barqueiro, pulando na água - Vocês perderam toda a vida!”

Tutores e templos

Enfim, assumindo que a educação exista, precisamos definir como ela será praticada em nosso cenário. Eu sugiro os tutores e templos, igualzinho como era na vida real. Nobres e burgueses com dinheiro para isso poderiam contratar um professor particular, um tutor para seus filhos e que lhes ensinasse a ler, escrever, fazer contas, noções de heráldica, um pouco de História, Filosofia, uma pitada de cultura (declamar um poema, tocar uns instrumento) e, quem sabe, um pouquinho de Geografia e Astronomia.

Quanto aos templos, divindades voltadas à cultura e à educação poderiam possuir algo parecido com nossas escolas, mas que não funcionariam como elas. Esqueça aulas diárias, planos de estudos, professores especialistas. Pense em alguém que sabe algo (como ler) e que vai ensinando quem quiser e (especialmente) tiver tempo para aprender. Não esqueça que o conceito de “infância” é algo BEM moderno e que até bem pouco tempo era só ter um pouquinho de força e a gurizada já pegava no cabo da enxada ou mesmo da espada.

Se você quiser um mundo mais verossímil, não transforme esses templos em escolas públicas, com centenas de alunos. Dificilmente a nobreza (e até mesmo a própria igreja) iria permitir que o populacho aprendesse qualquer coisa. Conhecimento é poder e um povo ignorante é muito mais suscetível a ser dominado. Interessante, isso não os faz lembrar o descaso geral que nossa educação vem tendo? Pssshhhhh! Fale baixo, podemos ser presos por subversão...

Classes nas classes!

Desculpem-me o trocadilho infame, mas vamos botar nossas classes mais comuns sentadas nas classes e ver como cada uma poderia ver o ensino:

Bárbaro

Na maioria dos RPGs medievalescos, o bárbaro é o único infeliz que não sabe ler. Ok, isso está certo, só não creio que deveria ser regra. Um rei bárbaro até poderia saber decifrar uma ou outra palavrinha, assim como um diplomata da tribo, talvez.
 
"Vamos conquistar logo esse lugar! Preciso voltar pra casa e ler meu gibi do Conan..."

Bardo

Por que o bardo deveria saber ler? Para escrever versos? A menos que seu bardo seja um poeta, não há razão nenhuma para que ele seja alfabetizado. Bardos viviam de ouvir e contar histórias, não LER e contar o que foi lido. Claro, exceções poderiam existir, especialmente se ele for funcionário de algum nobre.

Clérigo

Apesar de o clero compor a parte mais erudita da Idade Média,  não eram todos os sacerdotes que sabiam ler e escrever. Acreditem ou não, grande parte dos padres da Idade Média não sabia ler! Isso mesmo, eles interpretavam a Bíblia pelo que haviam ouvido, não pelo que haviam lido.

No caso da classe de Personagem, podemos alegar que ele é um missionário, um peregrino que vaga pelo mundo espalhando sua fé. Assim, creio que um clérigo deveria ser alfabetizado normalmente.

Haja paciência para ficar copiando todo um livro...

Homem de Armas

Dependendo do guerreiro, até poderíamos compreender a alfabetização. Talvez ele seja um cavaleiro ou um nobre e aprendeu a ler e escrever com algum tutor. Mesmo assim, isso configura em exceção, não em regra. Talvez ele saiba identificar as letras que compõem a palavra “taverna”, mas imaginem um guerreiro em seus momentos de lazer folheando um romance...

Ladrão
 
Esqueça essa ideia boba de manuais de ladinagem. O bom e velho ladino aprende seus macetes com a prática, não com o estudo. Talvez algum especialista no roubo de obras de arte ou mesmo de bibliotecas, ou, quem sabe, um explorador de tumbas soubesse ler e escrever. Para mim, 90% deveria ser tão analfabeta quanto qualquer camponês.

Mago

A única classe com todos os motivos para saber ler e escrever, bem como a de mais fácil explicação: assim como aprendeu magias, o aprendiz aprendeu a ler e a escrever com seu mestre. E não existem magos analfabetos? Ora, por que não? A magia está muito além dos livros e laboratórios. Assim como existem médicos formados, também temos os curandeiros e suas plantas medicinais.

Outras classes
 
Rangers, druidas e feiticeiros não precisariam, necessariamente, serem alfabetizados. Os dois primeiros por serem afeitos à tecnologia e por pregarem um modo de vida mais simples e próximo a natureza, o último por não precisar de estudo para lançar suas magias.
Os monges e paladinos seguem o mesmo exemplo do clérigo: dependendo da igreja/ordem e da função, pode ser que eles saibam ler e escrever.


Eita, mais um post enorme para minha coleção! Espero que tenha sido uma lição útil para todos vocês. Um abraço e até mais!
Prof. AlessandroAlessandro é professor de Inglês, Espanhol, Português, Religião e Literatura devido à profissão. Cineasta, cientista, astrônomo (não astrólogo...), artista plástico, ator, músico, linguista, poliglota, crítico e escritor devido à paixão. Leitor, RPGista, nerd, cinéfilo, enólogo e ocultista devido à diversão. Maníaco por cultura devido a algum mal genético. Ah, e chato, por pura força de vontade.

6 comentários:

  1. Ótimo postagem... um dos melhores deste ano na blogsphera!!

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  2. Agora fiquei imaginando um grupo onde todos os personagens são analfabetos precisando enviar uma carta. Eles teriam que ir atrás do clérigo da cidade que é o único que sabe ler e escrever no local. Só que para enviar a mensagem o clérigo iria pedir uma missão ao grupo...

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  3. Simplesmente fantástico! Eu gosto muito de jogos verossímeis, que se aproximem ao máximo da realidade, e a ideia de colocar desenhos, em vez de texto, em placas, é muito interessante.

    E se o João Brasil disse que é um dos melhores posts do ano, não se pode duvidar.

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  4. Em sistemas de RPG's mais antigos eles tinham o cuidado sobre a questão saber ler/escrever.

    Um sistema "moderno"* que usa a base dos sistemas antigos, como é o caso do Old Dragon, trás a restrição sobre saber falar/ler/escrever idiomas.

    Alguns PJ's sabem falar diversos idiomas, mas não necessáriamente saiba ler e escrever nestes mesmos idiomas.

    Os sistemas mais modernos tais quais D&D 3E e 4E é menos rigoroso quanto a isso.
    Esses sistemas pesam se realmente é relevante para o sistema toda essa simulação da realidade quando o assunto é ler/escrever e na aquisição de novos idiomas.

    Eu tenho dúvidas entre ser realista ou deixar a como o D&D 4E faz, abstrair, por não achar relevante.

    *Old Dragon apesar de usar a 1E/AD&D/e outros sistemas D&D like como inspiração, possue elementos do D&D 3E (que é um jogo moderno).

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  5. Seu anarquista! Seu subversivo! Seu terrorista! (ok, ok, eu paro de te elogiar, não quero que me achem puxa-saco... ^^)

    A respeito do post...

    Tendo Arton por padrão de mundo medieval fantástico para mim, pois foi o primeiro (e único [?]) cenário a respeito do qual eu realmente sei (sabia...) um pouco a respeito, a idéia de deixar o povo analfabeto parece um pouco estranha, mas faz bastante sentido quando vista por outro ângulo, como o demonstrado na postagem :)

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