quinta-feira, 30 de junho de 2011

Lição: O que é interpretação?

Olá, classe! Peço desculpas por não ter postado nenhuma lição semana passada. Há um bom motivo para isso, que explicarei na lição de hoje. Pensando em meu prometido post sobre equilíbrio, senti necessidade de, primeiramente, debater com vocês um ponto importantíssimo no RPG: a interpretação. Afinal, o que significa isso?

Antes de começarmos, preciso justificar-me: ando ausente da blogsfera e das listas nas últimas semanas, como devem ter percebido. No entanto, a razão é boa: estou trabalhando na tradução de um novo material que sairá pela Red Box, a editora do Mr. Pop, do Neme e do Dan. Por enquanto, não posso divulgar detalhes (lamento, é cláusula do contrato manter sigilo...), mas posso adiantar que é algo bem conceituado lá fora e que vai agradar muito a todos vocês! Algo totalmente diferente do que estamos acostumados por aqui, portanto, aguardemmmmm! (como diria Sílvio Santos)

Voltando a lição. Em nosso último encontro, pedi a opinião de vocês sobre um post falando do equilíbrio nos jogos de RPG. A proposta foi bem-vinda e eu comecei a escrever a coisa toda. No entanto, em boa parte do post, percebi a palavra interpretação. O assunto é tão importante que, com certeza, vale um post e um debate aqui com nossos discípulos do Clérigo.
Em minha opinião, houve três grandes momentos em que a palavra “interpretação” ganhou importância no RPG:
  • Na criação do jogo, quando Dave Arneson propôs regras menos “wargame” para o Chainmail.
  • Quando Mark Rein “bolinha” Hagen lançou “Vampiro: a Máscara”.
  • No atual debate (ou “embate”) old school x new school.
Em cada um deles, o enfoque foi outro. A história varia conforme quem conta, mas acredito que titio Dave pensou no que seus personagens faziam entre as batalhas e, a partir daí, houve o estalo e nasceu o RPG.

Já Hagen viu a interpretação de outro modo, muito mais a ver com “encenação”, teatro mesmo, do que com jogo de dados. Seu personagem realmente devia ser encarado como um papel, precisava ser “encarnado” durante as sessões.

Por fim, os atuais defensores do old school acabam com as calças na mão quando falam que seus jogos têm mais interpretação que os jogos atuais. Vejam bem, eu sou um entusiasta do old school mas não concordo com essa afirmação. Basta uma lida nos manuais de OD&D ou mesmo de AD&D para perceber que a interpretação jamais ficou em primeiro plano. Ao menos não no sentido denotativo da palavra (aquele que está no dicionário).

Pois bem, segundo o Houaiss (o Tarrasque dos dicionários), o verbo “interpretar” pode significar:
1 – Determinar o significado.
2 – Adivinhar o significado de algo por indução.
3 – Dar certo sentido a algo.
4 – Traduzir ou verter de uma língua para outra.
5 – Representar um personagem ou obra.
6 – Tocar ou cantar uma composição musical.

Qual desses sentidos é válido para o RPG? Em minha opinião, nenhum. Você faz muito mais do que representar um personagem, não é como um ator de teatro. Pode ser parecido, mas não igual.

Agora, se pegarmos a origem da palavra, aí, sim, podemos encontrar um pouco de RPG. Interpretar vem do latim interpretor, verbo depoente que significa, entre outras coisas, “interpretar”, “analisar”, “escolher”, “traduzir”, “explicar”. Não é isso que fazemos ao jogar RPG? Interpretamos (agimos como) um personagem, analisamos a situação, escolhemos nossas ações, traduzimo-las em regras e, como Mestres, explicamos as consequências. Isso sim é interpretar em RPG. Partindo da etimologia da palavra, vejamos caso a caso.
Ah, o velho e bom vovô latim...

Interpretar

Viver o personagem, agir como o personagem. Se eu sou um bárbaro brigam, eu falo de maneira furiosa; se sou um bardo galanteador, faço uma voz melosa; se sou um paladino honrado, falo de forma impecável (inclusive usando próclise e mesóclise!); se sou um ladino furtivo, falo pouco e sussurrando. Percebam como esse sentido pode ser utilizado em qualquer RPG. Eu utilizo isso até mesmo em jogos eletrônicos, como Neverwinter! Não importa se seu jogo “tem pegada” old school ou se parece “vídeo-game de papel”, como alguns dizem, você pode (eu diria que DEVE) interpretar.

Analisar

Aqui, talvez, tenhamos um ponto de embate. Vou usar o D&D como exemplo: até o AD&D, você precisava deduzir o que estava acontecendo por si mesmo. Não havia nenhuma rolagem para descobrir se estavam falando a verdade ou para tentar convencer a mocinha da taverna a ir com você para a cama. Já na terceira edição, isso se tornou possível: vejam a Perícia “Obter Informação”, por exemplo, ou a habilidade “Conhecimento de Bardo”.

Mesmo assim, isso pode variar conforme o Mestre. Em minha mesa de D&D 3.0, cabe aos Jogadores a análise das informações que dou, sem rolagem alguma. Se o bardo quer passar uma cantada na filha do prefeito, primeiro ele atuará e, depois de ouvir o xaveco, eu, como Mestre, decido se ele consegue automaticamente, se falha vergonhosamente ou se deve lançar o dado.

Escolher / Traduzir

A escolha, no RPG, refere-se ao momento mais importante do jogo, aquele instante em que o Mestre lança a narração na mão dos Jogadores. “Vocês entram no castelo e vêem o líder orc segurando o rei, apontando sua faca suja e deformada para o pescoço do monarca. ‘- Não se mexam, ou eu mato ele! (sic)’. O que vocês fazem?”. E, novamente, teremos um dilema conforme o sistema de regras.

Há jogos que prevêem diversas regras para as mais variadas situações. Um Mestre que siga as regras ao pé da letra pode acabar enfiando os pés pelas mãos e transformar esse momento tenso em uma hora de cálculos de movimentação, verificação de habilidades e rolagens de dados. Eu creio que essa seja a principal diferença entre um RPG old school e um new school. A preocupação com a “precisão” das regras acaba transformando os combates em jogos de xadrez. Não que eu não goste de xadrez, mas esse é um combate! Há um rei em perigo! É preciso ser rápido, dinâmico! E, confesso, é isso que estou adorando no material que estou traduzindo...

Falando em tradução, aqui também entra a “tradução” da ação para as regras do sistema. Assim, no exemplo acima, se os Jogadores precisarem ficar olhando cada canto de sua ficha atrás do que fazer e o Mestre fica consultando tabelas e pedindo rolagens para ver se algo funcionou, o clima de tensão cai por terra.

Logo que começamos a jogar a terceira edição de D&D, eu e meu grupo compramos miniaturas e usávamos grids de combate milimétricos para os combates. Tudo na minúcia. A princípio, tudo ia muito bem, mas logo percebemos o quanto aquilo atrasava o jogo. Pedi se poderíamos esquecer as miniaturas e só usá-las para termos uma ideia geral do que estava acontecendo, sem preocupação com Ataques de Oportunidade e distâncias precisas. Estava de volta o combate dinâmico!

Esse, talvez (mas, veja bem, talvez), seja o motivo de tanta briga. O “problema” visto pelos old schoolers nos jogos new school é justamente esse: a preocupação com regras bem amarradas, que, também em minha opinião, acabam prendendo o jogo aos movimentos táticos e cálculos, esquecendo o livre-arbítrio do Jogador. Qualquer RPGista com um mínimo de horas-jogo sabe que NENHUM sistema pode prever tudo o que o Jogador quiser fazer. E, se houver, eu não quero nem ver, pois será um calhamaço maior que o meu Houaiss aqui...

Explicar

O poder do Mestre é incontestável. Correto? Bom, nem tanto. Cabe ao Mestre explicar o que acontece no mundo de jogo após a escolha do Jogador. Saber conduzir a narração a partir das escolhas alheias é uma das virtudes de qualquer pretenso Mestre.

Primeiro, se o Mestre precisa, novamente, consultar tabelas e várias anotações pessoais para decidir o que acontece, o clima se desfaz. Foi o que ocorreu no caso do “dracoelho” que já debatemos. Eu não lembrava da magia, não lembrava se o dragão podia ser afetado ou não e, principalmente, não esperava essa ação do Jogador. Ou seja, pego em flagrante, acabei perdendo o fio narrativo e o clima de tensão foi para o espaço. Talvez, se eu tivesse assumido que o dragão tinha virado um coelho e, devido à velocidade, tivesse conseguido fugir, o clima não se perderia e um medo por uma possível vingança deixaria todos tensos.

O velho e bom “bom-senso” (sim, “bom-bom” ficou ridículo, mas...) é a melhor arma para o Mestre não ser pego desprevenido e para que ele consiga detalhar o que está acontecendo no mundo de jogo. Em certos momentos, é preciso esquecer as regras e deixar a imaginação voar. Assim como no Romantismo, por vezes a emoção deve vencer a razão.
Se você gosta ou não, respeite. E, se você é old school, respeito o new school também.

Concluindo

Percebam como esse ponto é importante: ele é o cerne do embate entre old schoolers e new schoolers. De um lado, o pessoal dizendo que a quarta edição não admite interpretação, de outro, a galera afirmando que sim, é possível. Se dividirmos o termo interpretação em suas várias acepções, notamos quais são as diferenças e que ambos os lados estão errados, conforme o caso. E isso vai influenciar muito no conceito de equilíbrio, mas isso é assunto para o próximo post. Até lá!
Prof. AlessandroAlessandro é professor de Inglês, Espanhol, Português, Religião e Literatura devido à profissão. Cineasta, cientista, astrônomo (não astrólogo...), artista plástico, ator, músico, linguista, poliglota, crítico e escritor devido à paixão. Leitor, RPGista, nerd, cinéfilo, enólogo e ocultista devido à diversão. Maníaco por cultura devido a algum mal genético. Ah, e chato, por pura força de vontade.

8 comentários:

  1. Definitivamente, um jogo 100% preso a regras é um jogo muito pouco flexível. RPG é táctico, é estratégico é lógico, sim, porem ele é mais versátil por um fator inerente muito esquecido, o fator humano.
    Se há pessoas controlando os personagens, então sempre se deve esperar uma surpresa, sempre pensarão algo que você não pensou, e isso vale aos criadores do sistema.
    Garanto que nenhum escritor pensou no Dracoelho...

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  2. Caramba... simplesmente fantástico, professor! Remeter a palavra interpretação às origens latinas foi extremamente inteligente e perspicaz. E mais brilhante ainda foi interpretá-la para o contexto dos jogos de RPG.

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  3. Cara um dos melhores textos que já li nos blogs de RPG meus parabéns!

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  4. Concordo... Realmente uma aula de interpretação =)...

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Olá Alessandro, primeira vez por aqui.

    Não li ele todo, só uns pedaços que me chamaram atenção (sincero, ué).

    Eu preciso fazer uma pergunta: Você já teve algum jogador que sai personagem, entra personagem, no fundo no fundo... é o mesmo?

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  7. @Mestre do jogo: cara, eu conheci um cara assim. O pior era que não era só os PJs, mas os NPCs que ele interpretava, eram todos iguais XD

    Mas hj em dia ele mudou bastante e já consegue diferenciar um pouco cada personagem.

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  8. Mestre do jogo, tive sim (na verdade, ainda tenho). Entra personagem, sai personagem, ele é sempre o mesmo guerreiro encrenqueiro, sarcástico e violento. Em nossas mesas, ainda não tivemos problemas, mas claro que, em um jogo mais sério, teríamos que conversar com esse rapaz e fazê-lo perceber que, em certos momentos, é melhor usar o cérebro e o diálogo ao invés dos músculos.

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